Acostumamos a desviar os olhos e rotular os adictos que perambulam por aí de vagabundos, mente-fraca, zé droguinha, crackudo, pé-inchado, entre vários outros vulgos que denigrem sua identidade e sua história. Ficamos incomodados quando essas pessoas invadem nossos espaços - mesmo que públicos - trazendo consigo um cheiro forte e a aura pesada. Quando atravessam nosso caminho de forma inconveniente e até animalesca, nos forçando a nos retirarmos para não sermos incomodados.
Acostumamos a não mais olharmos em seus rostos. A não nos importarmos se estão passando bem. Se estão precisando de alguma coisa. Acostumamos a ignorar sua presença para que ela não seja mais um problema. Ignoramos o problema e o damos por resolvido.
Acontece que esses problemas são pessoas, na maioria das vezes com filhos, irmãos, cônjuges, pais, entre outros entes que lhes querem bem. Pessoas que são acostumadas a olhar em seus olhos, a gostar da sua presença e a confirmar sua identidade e história com o devido respeito. Essas pessoas carregam diariamente o peso de um problema mal resolvido, que é ver o definhar de um ente amado, entregue ao vício e à compulsão. É quase como ser obrigado a ver o enterro de alguém vivo. Alguém a quem se ama. Alguém com quem se tem uma história muito significativa.
Por motivos que vou tentar explicar num outro post, o SUS não oferece mais leitos de internação para esses casos, podendo o adicto recorrer ao CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). No CAPS AD é realizada uma triagem e o usuário passa a participar das atividades oferecidas no local. Uma equipe multiprofissional oferta cuidados em várias especialidades, os quais são agendados com antecedência, podendo ser individuais ou em grupo. Tudo "gratuito".
Ninguém pode ser obrigado a frequentar um CAPS. O CAPS não tem leitos de internação. O CAPS AD trabalha com a redução de danos. Essas três afirmações levam grande parte da população a desacreditar na efetividade deste tipo de tratamento. Uma parcela inclusive acredita piamente que a internação compulsória é a unica forma efetiva de resolução do problema.
Acontece que as pessoas quando não querem ser tratadas, pulam os muros das clínicas. Precisaríamos de clinicas-presídio por todo o país. Acontece ainda que, mesmo que consigamos convencer um usuário a aderir a uma internação, assim que recebe alta, ele volta para o mesmo contexto que culminou na sua adicção. Diferente de pessoas com boas condições financeiras, que podem tentar resetar sua vida e se inserir em novas situações, muito diferentes daquelas onde adoeceram, cabe ao pobre a imobilidade de permanecer no mesmo lugar onde se deu a sua derrocada. E assim, mesmo após meses de internação, em uma semana de volta à sua antiga vida, a recaída é a realidade de muitos.
A redução de danos trata exatamente dessas pessoas: das que já tentaram de tudo e voltaram à estaca zero incontáveis vezes. E que são quase todos os viciados dos grandes centros urbanos. Para elas a internação nunca funcionou, então são tratadas dentro do seu ambiente cotidiano, sendo levadas a pensar e refletir nas melhores formas de sobreviver à sua realidade. Numa realidade onde na maioria das vezes não há muita gratificação além do torpor e da fuga, falar em abstinência faz muito menos sentido do que falar em redução.
Reduzir danos é sobre tomar consciência de que a sua realidade não vai acordar diferente do dia para noite, e tampouco você mesmo. É sobre admitir que seus problemas não vão desaparecer, pelo contrário, eles te perseguirão dias após dia. É tomar consciência de que todas as tentações do mundo te visitarão em um único dia e se você não conseguir resistir à algumas delas está tudo bem, você não é pior do que ninguém por isso. É sobre poder acordar mais um dia e saber que não foi sorte, mas vontade. É sobre poder conviver e comemorar com a família e os amigos, pois mesmo que a vida não seja perfeita, mesmo que nós não consigamos ter as atitudes perfeitas, que mesmo assim os sorrisos dados e recebidos sempre serão o melhor alívio para tudo.
Reduzir danos é ampliar a melhora.